Os Contos de Canterbury
Os Contos de Canterbury (I Racconti di Canterbury,
FRA/ITA,1973). Direção: Pier Paolo Pasolini. O clássico reestreou, com cópia
nova, na Sala Walter da Silveira e ficou em exibição uma semana antes do
carnaval. Os mais atentos conseguiram ver( na minha sessão tinha seis cabeças
somente), o que implica em uma nova exibição do filme após o Carnaval aos desavisados.
Originado nos relatos de Chaucer, o filme faz parte, com Decamerão e As Mil e
Uma Noites, da Trilogia da Vida de Pier Paolo Pasolini ( todas vistas em uma
única tarde-noite em sequência, mas que só expandiremos mais a obra fílmica “Os
Contos de Canterbury”). Podemos afirmar que a trilogia trata ou cuida-se da
exaltação da vida no seu mais puro fervor, a após renegada pelo diretor, que
fechou sua carreira com o soturno Salò, filme violento e de maus presságios,
porém incontornável para o bem e para o mal, escreveria que muito mais para o
bem do cinema de todos os tempos. Assim
como Decamerão e As Mil e Uma Noites, também em Canterbury o tema central recai
sobre o elemento erótico, há quem diga que trata-se de um pornô soft; lógico um
ignorante que não sabe a diferença entre o cunho erótico politizado de Pasolini
e um Cinquentas Tons Mais Escuros da vida, isto é, sem mais comentários, pois
não merece. Diferente dos tais pornôs soft , Pasolini era sensível a esse tipo
de dimensão, isto é, não encenava uma orgia por ela mesma, sempre tinha uma
nuance politica-poética naquilo em que se propõe a filmar e não apenas pela
maneira desabrida como enfrentava a questão da sexualidade que nos tempos de
hoje chega até ser ridícula de tão estapafúrdia e não natural. Parecia-lhe
interessante contrapor momentos da História em que a sexualidade fora vivida de
maneira diferente da nossa contemporânea moral judaico-cristã. Em especial,
prévias ao moralismo da época vitoriana, que se estende pelas primeiras décadas
do século 20 até ser contestada apenas durante a breve primavera dos anos 60.
Assim, Pasolini vai em busca de dois narradores medievais, Bocaccio e Chaucer,
um italiano e outro inglês, em busca dessas sensibilidades alternativas que
acontecem entre os séculos XIII e XIV.
De suma Os Contos de Canterbury é uma discussão acerca o não
centramento das questões que se impunham no início dos anos 70 – o dessabor com
a falência da revolução dos costumes dos anos 60 e os indícios de que o
fascismo não havia sido extirpado de vez, como apressadamente se supôs no final
da 2ª Guerra. Pasolini recorre a uma série de relatos em que a sexualidade está
longe de ser “naturalizada” como na época moderna. Antes, o sexo aparece
espreitando como força vital, que se insinua entre o pecado e a permissividade.
São muitas as situações de triângulos amorosos, maridos enganados por esposas
fogosas, espertezas de casais que querem fazer amor e veem-se impedidos por um
motivo ou por outro. Não existe desejo sem dificuldades e, assim, o sexo
aparece como força indomável que justifica esforços e riscos de todos os tipos,
inclusive da própria vida.
Sobre sua linguagem, o filme é bastante liberal, mesmo
tendo sido feito 43 anos atrás. São comuns as cenas de nudez, inclusive
frontal, com os personagens (alguns vividos por atores não profissionais)
expondo sem inibição os órgãos sexuais. Pasolini dá a esse contexto da
sexualidade uma forma pictórica que remete às pinturas de Bosch e Brueghel, em
especial nas cenas (de antologia) do Inferno. Canterbury, como os dois outros
da Trilogia, é um filme libertário, que canta à vida em seu pleno vigor e coragem,
mas que já traz uma espécie de prenúncio da tragédia que viria em seguida com
Salò – representação da república fascista numa reciclagem de Sade. Uma obra
prima que nos faz pensar que o sexo é muito mais que uma mulher bonita
rebolando em uma escola de samba. Ou seja: o sexo ou o ato deste pode ser visto
com menos vulgaridade, independente de opiniões de peso alheias, tais como
religião e sociedade. Nascemos para o ato, isto é um fato e naturalmente provável,
e Pasolini consegue nos dizer com
elegância e ainda sem pudor nesta grandiosa obra.
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