A boca do estomâgo

Um homem sem estória é um homem sem identidade. Chegou a hora de uma estória doida, mas que deve ser revelada. O bairro do qual estou vivendo desde meus 3 anos de idade, ou seja, a vida toda, com uma passada de 1 ano morando em São Paulo, mas nesse bairro me criei, aprendi e deixei de aprender muita coisa. O bairro fora feito na década de 1970 para abrigar os funcionários da Petrobras, ou seja, ficava próximo da sede da empresa. Stiep quer dizer algo como: sindicatos dos trabalhadores de petróleo. Nesse bairro me criei, aprendi a jogar bola e pegar onda e mulher. Enfim, é um bairro muito especial pra mim, apesar de sua maioria ser composta de trabalhadores braçais, o que na época se pedia. Os melhores amigos que tinha tinham pai analfabeto, mas estudavam em escola particular e tinham tudo do bom e do melhor, mais que eu inclusive. ; nunca consegui entender isso: como analfabetos tinham tanto dinheiro assim? Era realmente um choque de paradigmas para mim. Com choques ou sem eles, fundamos o A.D.S. que era composto por meus colegas moradores do bairro, eu e alguns convidados que trabalhavam no bairro como jornaleiros, pedreiros, eletricistas, garis etc. Éramos bastante democráticos e tínhamos uma lei: colocar os melhores para jogar. Esses convidados eram todos oriundos de um bairro referencia e com mais fama pela música de Gil e principalmente “Caretano”; morávamos sem trocadilhos infames na beira da boca do rio. E a boca do rio, quer queiram os moradores do nosso bairro ou não, era a nossa vitrine, eu explico: toda vez que alguém perguntava onde ficava o stiep, todos respondiam: é um bairro adjacente a Boca do rio, próximo a sede de praia do Esporte Clube Bahia, ou seja, é um puxadinho da boca quente em todos os sentidos que era a boca do rio, e que continua a ser ainda hoje. Maconha por lá deve ser mais fácil que comprar pão, você tendo os canais ou fontes certas. Mas vim aqui pra contar de meu primeiro time de soccer que na época só tomava saco, ou, seja, saco, goleadas humilhantes. O time era 60% de peões que trabalhavam pelo bairro e os restantes era eu e mais alguns que ao menos não faziam gols contras e isso já era uma bela conquista por si só: não terem jogadores capazes de fazerem gols contra. ; depois de 1 ano com 3 ou 4 jogos por semana ( sendo goleados, claro), decidimos por teor irônico mudar o nome do time para associação desportista Sacolândia, pois só tomávamos saco seja em qual lugar fosse: dentro do stiep ou fora dele a goleada no primeiro ano de clube de bairro. Depois de alguns reforços e dispensas de os piores pernas-de-pau, conseguimos mudar o nome do time novamente para associação desportiva stiep. Neste segundo ano, aceitávamos qualquer convite de qualquer time em qualquer campo, visto que nossa estima estava lá em cima e duvidávamos mesmo que algum seria capaz do nos ganhar. Depois de jogarmos em pelo menos 6 bairros diferentes, a nossa invencibilidade continuava intocável. Eis que surge um convite para jogarmos no bairro mais perigoso devido ao tráfico de drogas e numero de assassinatos de salvador, do qual tinha o nome de Nordeste de Amaralina. Como ainda não sabíamos da fama do lugar, aceitamos o convite a fim de nos mantermos invictos. Tínhamos uma saveiro, de modo que em duas viagens de carro, o time todo chegava. Quando chegando lá o campo e suas “coberturas” eram algo de realmente assustador. Primeiro pelo acesso de entrada ao campo ( que era uma só porta mini para sair e entrar. Vejam bem meus caros: vendo o jogo deveriam ter uns 500 elementos naquela prisão de uma porta pequena só: o local parecia coisa de cinema mesmo: um cinema que conta a estória da câmera de gás nos judeus pelos alemães nos campos de concentração na segunda guerra mundial. A diferença agora era que os alemães agora eram os negrões do bairro do nordeste da amaralina e os judeus éramos nós: moradores de um bairro de classe média de Salvador. Todos nós percebemos que existia algum risco em jogar naquele campo onde não tinha pra onde fugir se alguma briga acontecesse. Dessa forma desistimos e fomos chamar o nosso único conhecido do time adversário ( que era o porteiro do colégio estadual do bairro ou sempre deixava que rolassem nossos babas por todos os dias). “ cara , acho que não queremos jogar aqui, não se tem saída caso dê alguma merda e esse bairro é pau-viola “ O nosso vulgo amigo respondeu com um sorrisinho sombeteiro: “agora é tarde, a galera da boca , os traficantes querem ver esse jogo entre pretos pobres contra brancos e mestiços de classe média”, que pra eles éramos ricos, sem dúvidas. Sem ter o que fazer começamos a partida e fizemos 1x0 ( gol meu). E a ordem chegou de cima da arquibancada através de olhares desapontados de que nosso time era mesmo melhor do que o deles e se jogássemos 1000 partidas com eles, ganharíamos todas . Os caras eram muito ruins mesmo e nós éramos um time razoavelmente treinado, pois jogávamos todos os dias com chuva ou com sol. De uma hora pra outra uma bola foi levantada pelo meu arqueiro vindo a mim, que era o centroavante do time. A bola veio aérea, de modo que fui na disputa para cabeceá-la , porém ao invés da disputa entre cabeças , subi sozinho e encontrei um cotovelo afiado em baixo da boca do meu estômago dos meus 16 anos de idade. Primeiro não saquei que a violência já tinha chegado ao campo e as coisas poderiam piorar bem mais ainda. Se esse jogo fosse aos dias de hoje, certamente a procura de cadáveres seria grande. Como o soco no estomago é um soco estratégico, ou seja, ele é sentido depois de alguns segundos, fiquei naquela de ficar olhando puto pra a cara do zagueirão querendo revidar ou ao menos perguntar o porquê ele tinha feito aquilo, já que não tinha relado nele. Mas segui o conselho de um amigo do time para ficar calado, apanhar calado e sair vivo daquela era a melhor estratégia naquele momento. No final do jogo ganhamos por 1 x 0 só na categoria com os nossos jogadores tocando 2 vezes na bola para fugir das agressões. Os caras pediram um tempo extra, não conformados com a derrota. Acabamos deixando empatar o “ jogo-”esparro”. Pela mesma e única portinha que adentramos no campo escondido, saímos são e salvos rapidamente com o final da partida. A resenha após era unânime de termos nascidos novamente e nunca mais ponhaírimos os pés naquele lugar. Mais o que mais me recordo dessa estória toda foi a cotovelada no estomago que recebi. Volta e meia escrevendo resenhas cinematográficas ou conversando acabo por usar a expressão: Isto é um soco no estomago de tão forte.

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